Animais, Vírus, ou Idiotas

Ao iniciar mais um dia de trabalho como todos os outros, fui abordado por um grupo de alunos de sétimo ano que pediam uma aula diferente, mais viva e dinâmica. A insistência deles fugia do conteúdo que fora planejado, mas provocativo o bastante para que eu tivesse uma ideia. Bem, será que fugia mesmo? Depois do ocorrido, cheguei a conclusão que estava totalmente equivocado.
Disse a eles: "vocês querem uma aula diferente? Ótimo! Deixem todo o material de vocês sobre a carteira, e vamos até o pátio. Quero todos sentados em círculo". A reação da turma foi de espanto geral: "Como assim?
Já no local solicitado e todos sentados em círculo, sugeri que faríamos uma "roda viva", e eu seria apenas o mediador que provocaria a todos a falar. Comecei com uma pergunta simples: "o que é o ser humano?" Como já era de esperar, a resposta não foi diferente daquelas falas memorizadas que estamos cansados de ouvir: "um animal racional". Insisti no assunto: "o ser humano é, de fato, um animal?". Apesar da resposta anterior, dada por um aluno e concordada pelos demais, o novo questionamento despertou a resposta em coro: "não!" Insisti mais uma vez: "Então, se o ser humano não é um animal, o que o diferencia dos animais? O que faz dele um ser diferente?"
As respostas seguintes não conseguiam atender de maneira concreta os questionamentos que apresentava, e não conseguiam ultrapassar os limites do senso comum. Decidido a manter a estratégia de provocar os estudantes para que falassem, e assim fazer algo diferente e a altura do que pediram no início do período, questionei todas as respostas apresentadas com novas perguntas. Não demorou muito, e eles já não respondiam com a mesma convicção que antes, e muitos já estavam inseguros de suas opiniões. Permaneci firme até que todas as respostas oferecidas pelos estudantes fossem esgotadas.
"Para pensar este problema, voltemos a pergunta inicial. Para definir o que diferencia o ser humano dos outros animais, faremos o contrário, isto é, pelo que os assemelha", argumentei. 
"Humanos e animais partem de uma condição comum: são seres naturais, possuem um corpo, e estão sujeitos aos mesmos perigos da natureza". Os alunos reagiram com silêncio na expectativa de preverem onde eu chegaria com esse discurso. 
Vendo o quanto estavam vibrados na raciocínio, continuei: "Apesar disso, homens e animais se diferenciam pela composição de seus mecanismos instintivos. Podemos pensar os instintos partindo de duas dimensões: necessidades e satisfação das necessidades. Enquanto necessidade, humanos e animais têm exatamente os mesmos instintos: ambos necessitam alimento, de reprodução, de proteção dos perigos, e assim por diante. Nesse ponto, são iguais. a satisfação das necessidades instintivas dos animais é dada pela própria natureza. Precisam comer, mas há alimentos naturais específicos (padrão) para cada espécie; precisam reproduzir, mas o próprio biológico da natureza animal impõem ciclos reprodutivos que regulam o acasalamento". Os alunos acompanhavam o pensamento como que embarcados em uma viagem, sedentos por chegar as respostas das perguntas que fiz anteriormente.
Continuei: "vocês nunca verão animais em crise moral ou existencial porque engravidaram suas companheiras ou porque saíram com um 'sujeito' mal falado. Tudo o que fazem é uma questão de instinto. Nisso os humanos saem perdendo: a satisfação das necessidades instintivas não é dada pela natureza."
Os alunos permaneciam atentos, e eu prossegui: "Observem que essa é a única espécie que não tem alimentos próprios por natureza, habitats naturais específicos, ou mesmo padrões de sobrevivência como as demais espécies. Precisa sobreviver, mas não é determinado pela natureza e não sabe como fazer. Só resta uma alternativa: pensar". "Interessante", "nossa, que legal", "nunca pensei nisso", eram algumas das respostas que ouvia dos alunos.
"Isso significa", continuei, "que a única condição que realmente diferencia o ser humano dos outros animais é a capacidade de pensar, o que não significa, exatamente, que todos pensem antes de agir"
Após uma breve pausa, retomei o espírito socrático para provocar os ouvintes: "o que significa agir sem pensar?". "Agir por impulso", foi a resposta apresentada. Perguntei novamente: "Pode-se dizer que o ser humano que age sem pensar age como um animal?". Resposta em coro; "sim". Questionei: "então, mas, para ele agir como um animal, teria que agir segundo os instintos. Como isso é possível ele não possui padrões de comportamento determinados pelos instintos?" Os alunos ficaram novamente confusos. "Sendo assim, sou levado a pensar que o ser humano que age sem pensar é inferior aos animais, já que abre mão da única coisa que realmente o dignifica como um ser humano: a capacidade de pensar".
A reação dos alunos era de total surpresa, semelhante a euforia própria de uma criança sempre que descobre algo novo. A ideia de que "agir sem pensar" torna inferior aos animais provocou um verdadeiro rebuliço. Perguntei novamente: "então, se ele não é um animal, é o que então? Um vírus?". Todos riram. Citei então uma passagem do filme "Matrix" (Warner Bros, 1999); quando o personagem Agente Smith (Hugo Weaving) compara a espécie humana a um vírus, que cresce, reproduz, consome e explora tudo o que existe a sua volta e, quando não mais mais o que consumir, muda-se para um outro lugar onde possa continuar sua exploração insaciável. 
Olhei firmemente a um dos aprendizes presentes e perguntei se ele acredita que o ser humano que age sem pensar pode ser mesmo comparado a um vírus. "Acho que é pior". "Por que é pior?", perguntei. A resposta foi desconcertante: "porque vírus pode ser combatido". "Para muitos", continuou, "há vacinas e diferentes meios de prevenção e tratamento. Não consigo ver isso nos seres humanos que não pensam". 
O alvoroço foi total. Vários estudantes ficaram perplexos com a resposta, num misto de alegria e decepção pela nova descoberta. O mundo parecia ter acabado para eles. Pelo menos uma coisa ficou claro naquele momento: é impossível ser verdadeiramente humano sem dar a devida atenção a única habilidade que realmente confere dignidade a espécie: a capacidade de pensar.
"Se o ser humano que age sem pensar é inferior aos outros animais e inferior aos vírus existentes, age como o que então?", perguntei. Todos me olharam e a pergunta foi uma só: "é o que gostaríamos de saber". "Só pode agir como um idiota!", respondi.
Uma grande gargalhada quebrou o clima de tensão que dominara o ambiente. "É isso mesmo!", continuei, "não consigo nas pessoas que não pensam outra coisa senão pessoas fúteis, medíocres ou banais. Não estou julgando a profundidade de pensamento de cada um, muito menos quem pode ou não evoluir mais no pensamento, mas a total indisposição para pensar". A essa altura, a tensão vivida pelos alunos já estava convertida na alegria de uma das maiores descobertas de suas vidas: a de que são seres pensantes e ninguém pode lhes negar isso.
Foi então que cheguei ao conteúdo que realmente havia planejado para a aula do dia: "ética e responsabilidade ambiental". Comentei sobre os inúmeros avisos e alertas sobre a degradação ambiental que estamos acostumados a ouvir. Fiz então uma nova provocação: "mesmo sabendo de tudo isso, por que a grande maioria das pessoas insiste em reproduzir os mesmos costumes de consumo irresponsável?" 
Diante de algumas respostas que justificam essa triste realidade pela incapacidade de pensar verdadeiramente presente em vários indivíduos, fui abordado por uma outra aluna, que questionou: "então, eu posso mudar de postura porque sou capaz de pensar. Mas, o que isso irá mudar, se a grande maioria continuará sempre a mesma?". Só me restou responder: "se pensarmos na mudança coletiva, cairemos em uma utopia. Mas, se pensarmos em uma mudança de posturas que parta dos próprios indivíduos, falemos então de uma realidade". Ela insistiu: "professor, muitos não mudarão". Repliquei a ela: "de fato, muitos não mudarão. Muitos poderão serão provocados e influenciados por suas mudanças de posturas, pois toda e qualquer mudança de postura tem o potencial de provocar reflexões e pensamentos nas pessoas que estão em volta. Só não mudarão de jeito nenhum os banais, medíocres e idiotas, porque já não possuem mais única coisa poderia provocar neles qualquer mudança: a capacidade de pensar.
O sinal bateu e a aula acabou. Resta saber agora qual o real legado por eles conquistado após essa experiência. 

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