Como ler textos filosóficos


Que o hábito de leitura não é o forte dos brasileiros, todos já sabem. O que nem todos sabem é que "ler" não é uma atividade que se faz do mesmo modo com todos os tipos de literatura. Existem diferentes tipos de leitura, diferentes em suas modalidades, mas apropriadas para cada tipo de texto. Algumas exigem mais habilidades que outras, e é justamente sobre isso que falaremos hoje.
Independente da quantidade de livros que já leu ou costuma ler num determinado período, você já deve ter se deparado diante de leituras que pareceram fluir com muita facilidade, mas também já deve ter conhecido leituras de linguagem complexa e de difícil compreensão. Deve ter conhecido livros que assustaram pela espessura e pela quantidade de páginas, mas conquistaram pela linguagem simples e cativante, mas também já deve ter provocado por livros que, embora pequenos em espessura, desafiaram pela linguagem difícil, lenta e cansativa. Se já passou por isso antes, provavelmente conheceu um texto filosófico, que pode ser tanto um livro inteiro como apenas aquele fragmento utilizado em determinada aula na faculdade, ou mesmo na resolução de certa prova no ensino médio. 
Textos filosóficos são, em geral, compostos de linguagens complexas e exigem maior atenção. Vários são os motivos, mas a primeira característica que podemos destacar na dificuldade desse tipo de leitura é rigorosidade dos escritos. Por serem profundamente reflexivos, textos filosóficos são radicais em seus debates, e estão estreitamente vinculados aos contextos das épocas que foram escritos. Quanto maior o distanciamento no tempo, maior a dificuldade, não por mero capricho ou pelo prazer de se divertir com a ignorância alheia, mas porque o contexto envolvido está muito distante do contexto em que os leitores estão inseridos. 
Tente ler, por exemplo, um parágrafo do prefácio da obra "Crítica da Razão Pura", do filósofo Immanuel Kant, e confronte a experiência com o que estou falando nessas linhas. Se você tiver algum conhecimento sobre o Iluminismo, suas principais ideias e anseios, terá maior chance de entender alguma coisa; se tiver um conhecimento mais sólido sobre esse contexto histórico, poderá até compreender de maneira mais abrangente os ideais da época. Por outro lado, se não tiver a menor noção desse período histórico, "meus sentimentos" para você.

1° Dica: hábito de leitura.

    Não é possível ler um texto filosófico sem contextualizá-lo com o seu tempo. Mas essa não é a primeira habilidade a ser desenvolvida, já que existem outras habilidades mais básicas que antecedem a habilidade de contextualização. E quando digo que são habilidades básicas, é porque são básicas mesmo; algumas são tão básicas, que se aplicam a qualquer outro tipo de leitura, a começar pela mais óbvia de todas: o hábito de leitura.
Pense comigo: se você não tiver um hábito de leitura bem formado, não terá facilidade para ler qualquer texto que seja, que dirá um texto filosófico. Dependendo do hábito que você não tem, poderá encontrar dificuldade até mesmo com o texto que lê agora. Sua capacidade de concentração estará tão mal treinada, que não alcançará a 5ª linha sem que se perca em vãs distrações (há quem não passe da primeira linha). Já imaginou? Mas calma, tenho uma boa notícia: se conseguiu chegar inteiramente atento ao texto até aqui, é porque você não é totalmente um iniciante. Sinal que a primeira habilidade necessária está, no mínimo, a caminho.

2° Dica: paciência.

A segunda habilidade são direcionadas a textos um pouco mais complexos, independentes de serem filosóficos ou não. Estou falando da paciência. Não queira ler um texto filosófico com a mesma velocidade que se lê uma receita de bolo, ou uma história em quadrinhos; simplesmente não dá. Leia sem pressa, mas sem pressa mesmo. Não deixe se levar pelo velho mantra capitalista Time is money ("Tempo é dinheiro"), como se fosse uma atividade que pudesse ser simplesmente maximizada pelo menor custo de tempo. Não queira ler textos filosóficos como uma linha de produção, pois, caso contrário, você irá se "estrepar". Leia com calma, e não tenha receio de levar considerável tempo para compreender a essência do primeiro parágrafo; textos filosóficos são assim mesmo. 
Antes que você me ache um verdadeiro imbecil pelas coisas que estou escrevendo, vou fazer uma proposta: experimente, após vivenciar o que escrevi no parágrafo acima, avaliar o quando você amadureceu ao fazer esse tipo de leitura, mesmo que seja a leitura de um parágrafo apenas. Antes de qualquer julgamento, olhe para si mesmo e faça essa ponderação. Observe se cresceu e o quanto cresceu. Se a avaliação for positiva, talvez você mude de ideia quanto a minha imbecilidade.

3° Dica: Grifar sim, mas com bom senso.

Um dos hábitos mais comuns entre estudantes é grifar o que está sendo lido. É um hábito válido, mas, desde que se faça com bom senso. Cuidado para não grifar demais e deixar o texto perdido em meio a uma verdadeira poluição visual. Se já era difícil de ser antes, agora então nem se fala. 
Grifar é legal, desde que seja para identificar as ideias chaves do texto. Se feito com cautela, vale até grifar um parágrafo inteiro, mas apenas se ele resumir de maneira sintética todo o discurso de uma seção ou capítulo. Então, vá com calma. Se preciso for, deixe  marca texto meio longe no início, leia tudo primeiro, e só então faça os grifos que julgar necessário.

4° Dica: reescreva o que lê

Ação simples, aparentemente trabalhosa, mas muito eficaz para a compreensão da leitura: escreva com suas próprias palavras o que está sendo lido. Não copie, por isso sim só te dará trabalho, calo nos dedos, mas nenhum resultado. Simplesmente reescreva. Aproveite a oportunidade para enriquecer o seu vocabulário. Aliás, que tal ir um pouco mais longe: escreva de novo. Escreva uma, escreva duas, escreva três vezes se for necessário. 
Economia de papel e caneta em tempos de crise não é desculpa; utilize o bloco de notas do computador ou qualquer outro editor de texto. Está longe do computador? Ótimo, acredito que o Smartphone está ao alcance das suas mãos. Acertei? Então, utilize o bloco de notas do aparelho. 

5ª Dica: contextualize.

Não custa repetir o que já foi escrito no início desse texto: contextualize o que está lendo. Antes de iniciar a leitura, observe primeiro as principais informações biográficas do autor ou da autora (anos de nascimento e morte, lugar (es) onde viveu, etc.). Se for alguém que viveu em uma época diferente da nossa, procure então identificar o que vinha ocorrendo nesse período. Quais eram as principais ideologias e acontecimentos? Se necessário for, recorra a um manual de história e faça esse estudo. Só então comece a leitura.
Começou a ler, e não entender uma informação específica? Uma palavra talvez? Pode ser que você esteja lidando com um conceito. Recorra então a um dicionário de filosofia, e procure identificar o conceito que não entendeu.
Se conseguir fazer o que estou dizendo, perceberá então uma coisa fantástica: filósofos são, em geral, verdadeiros seres pensantes de seu tempo, homens e mulheres com incríveis capacidades de ler nas entrelinhas, questionar o inquestionável, e despertar as mais certeiras observações.

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