Por que a pobreza incomoda tanto?
Embora a pobreza seja um fenômeno social presente em todas as fases da história, nem sempre representou o mesmo incômodo que representa na atualidade. Se nas sociedades antigas a pobreza era encarada como como condição de nascimento, o mesmo não se pode dizer na modernidade. Quanto mais o tempo avança, maior a dificuldade na compreensão do problema, e maior a complexidade presente nas motivações que a geram.
Apesar de ser um fenômeno social comum a todas as sociedades, a pobreza deixou de ser encarada como fenômeno singular, de causa natural ou sobrenatural, para ser compreendida como fenômeno de múltiplas causas e existências. Fala-se não mais de pobreza, no singular, mas em pobrezas, no plural.
John Friedmann e Leonie Sandercock, especialistas em planificação urbana e autores do artigo "Os desvalidos", publicado em mais de 1995 em O Correio da Unesco e citados pela autora Cristina Costa no livro Sociologia, introdução à ciência da sociedade (São Paulo: Moderna, 2010, p.132), destacam três dimensões em que a pobreza pode ser compreendida atualmente: despossessão psicológica, despossessão social, e despossessão política. A primeira é caracterizada pela autodesvalorização da população pobre, que não se sente capaz, e muito menos no direito, de conquistar alguma coisa de melhorar suas condições de vida. Um exemplo bastante valioso para compreender este fenômeno é o "complexo de inferioridade", muito presente em grande parcela da sociedade.
A despossessão social está relacionada a ausência de prestígio ou reconhecimento social (ausência total de status social, político e econômico), e vinculada a despossessão psicológica, representada pela ausência de autoestima e motivação para o crescimento. Ambas são acompanhadas uma da outra, e ainda mais fortalecidas pela despossessão política.
Uma boa ilustração destas realidades é o fenômeno ocorrido com a babá Maria Angélica Lima, moradora de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, fotografada por um anônimo junto da família para quem presta serviço. Na foto, Maria Angélica empurra as crianças que cuida em um carrinho enquanto é observada pelo casal para quem presta serviços. Ambos se dirigiam em direção a manifestação político-popular contra a corrupção política, e a exposição do grupo repercutiu nas redes sociais com grande força devido os contrastes sociais presentes na imagem.
Trajada com o uniforme de trabalho, Maria Angélica Lima e acompanha a família para quem presta serviços até a manifestação político-popular ocorrida no Rio de Janeiro no dia 13 de março de 2016.
Devido a circulação viral da foto nas redes sociais, o portal de notícias G1 visitou a casa da babá para uma entrevista. Em certo trecho, Maria Angélica é questionada pela equipe de reportagem sobre ir ou não a manifestação caso estivesse de folga. A simplicidade da resposta revela parte de cada uma das despossessões citadas acima: "Eu iria se estivesse morando lá embaixo (na cidade do Rio). Ir daqui (Nova Iguaçu) para lá é bem difícil. Pego ônibus para ir trabalhar (clique aqui para conferir a reportagem completa)".
A resposta de Maria Angélica é, no mínimo, reveladora. Nela, a compreensão do que vem a ser pobreza ultrapassa os limites da escassez de bens e recursos materiais, e alcança outras dimensões sociais facilmente ignoradas pelo senso comum em frequentes abordagens. A impossibilidade de participar da manifestação por morar fora da cidade, como dito pela trabalhadora, aponta, além do distanciamento geográfico, a não existência de direitos garantias mínimas que permita aos vários trabalhadores, aqui representados nesta pessoa, se manifestarem e serem vistos.
Há ainda uma observação cômica na imagem. Num dia de domingo, patrões saem de casa para protestar com roupas de lazer (camiseta, bermuda, tênis, e óculos escuros), enquanto babás acompanham com seus uniformes de trabalho. Para piorar, o distanciamento físico do casal em relação a babá, observada de longe pelos patrões apressados, abre espaço para várias interpretações polarizantes. Discrepâncias que inspiraram inúmeros comentários nas redes sociais, Reflexos da sociedade em rede, onde fios interconectados com a máxima precisão permitem a publicação de intimidades em tempo real, porém mas não disponibilizam de tempo para mergulhar para além das superfícies da modernidade líquida.
Não é objetivo desse artigo avaliar ou julgar as motivações de cada um dos atores envolvidos na cena retratada pelo registro visual, mas analisar de maneira objetiva os contrastes sociais ilustrados na imagem. Qualquer julgamento que tente criticar motivações, comportamentos e convicções das pessoas fotografadas "por acaso" no episódio citado não ultrapassará os limites de uma análise subjetivista do problema.
Pesquisa realizada pela empresa Lean Survey na manifestação realizada na cidade de São Paulo no Mesmo dia que Maria Angélica foi fotografada, revela que 60,3% dos manifestantes possuem escolaridade de nível superior completo ou em andamento, 26,3% possuem renda mensal entre R$2.091,00 e R$7.300,00, e 23,9% conta com renda mensal entre R$7.031 e R$14,500,00 (clique aqui para acessar os dados da pesquisa). Embora as manifestações do dia 13 de março de 2016 tenham se motivado pelo combate a corrupção, que promove desigualdade social e fortalece conflitos sociais decorrentes da pobreza acelerada, os setores menos favorecidos da sociedade e mais afetados pela corrupção foram representados por menos de 8% dos manifestantes.
Como interpretar os dados? Primeiro rompendo com todos os estigmas, preconceitos, e julgamentos generalizados que possam existir. A pobreza está intimamente associada a desigualdade social, amplamente disseminada nos vários espaços da coletividade. Se compreender a fundo sua existência já é um desafio, compreender as causas que a dão origem é ainda mais complexo.
Seriam as causas da pobreza explicada pelas características individuais, étnicas, religiosas, e econômicas dos indivíduos, ou uma consequência da má administração dos recursos públicos por parte do Estado? Teria o governo condições de acabar com a pobreza caso fosse esse o seu interesse, ou a pobreza sempre irá existir porque os indivíduos pobres não estão dispostos a "agarrar" as condições necessárias para "subir na vida"? Afinal, quem são os maiores responsáveis por superar a pobreza: os governantes ou os indivíduos? De quem é a culpa?
Por que a pobreza incomoda tanto as sociedades atuais? Há um senso de justiça bem distribuído entre homens e mulheres, cidadãos, políticos e patriotas, que os despertam para refletir esta realidade, ou a pobreza incomoda porque é "suja", "feia", e "burra"? Por que a sociedade deve erradicar a pobreza? Para promover maior igualdade ou apenas para tornar as ruas mais "limpas", "bonitas" e "transitáveis"? Quais são as motivações reais que levam países e nações a valorizar a redução da pobreza como critério para elevar índices desenvolvimento humano e econômico? O que está por trás dos tantos discursos atualmente defendidos, contraditórios ou não?
Aqui estão apenas alguns dos vários questionamentos necessárias para melhor analisar o problema e compreendê-lo em profundidade. Respostas satisfatórias só serão alcançadas quando lacunas ideológicas presentes na sociedade forem esclarecidas e preconceitos forem deixados de lado. Enquanto isso não acontecer, homens e mulheres, ricos e pobres, adultos e crianças, continuarão cruelmente vitimadas pelos vários conflitos e tragédias resultantes da desigualdade social. Discursos intolerantes, radicalistas, carreiristas e posicionamentos que inspiram ódio e violência não resolverão o problema.
Quantas Marias Angélicas precisarão aparecer na mída para nos lembrar disso? E por quanto tempo
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