Da indiferença a Banalidade do Mal

Adolf Eichmann (1906-1962) foi um político alemão, membro do partido nazista de Hitler, tenente coronel da SS (tropa de assalto) e responsável pelo extermínio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (período conhecido pelos nazistas como "solução final"). Após o término da guerra, os membros do partido nazista presos pelos aliados foram julgados em uma série de tribunais militares que ficaram conhecidos como "Tribunal de Nuremberg", realizados na cidade de Nuremberg, na Alemanha, entre 1945 e 1946.
Eichmann conseguiu fugir para não ser capturado, e só em 1950 foi preso por um comando israelense em Bueno Aires (Argentina), onde vivia escondido. Foi então conduzido até a cidade de Jerusalém para ser julgado pelos crimes cometidos como general nazista. Hannah Arendt, filósofa e jornalista da revista norte-americana  The New Yorker, cobriu o evento em uma série de cinco artigos, que mais tarde inspiraram o livro Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal), publicado em 1963.



Julgamento do General Nazista Adolf Eichman, em Jerusalém.


Durante o julgamento, Arendt acompanhou atentamente cada detalhe. Para ela, a insistência de Eichmann em afirmar que cumpria ordens e nada mais que isso revelou um importante traço da realidade: a "banalidade do mal". Apesar de todas as barbáries praticadas pelos nazistas, Eichmann mostrou-se uma pessoa comum, que, em sua incapacidade de pensar ou refletir sobre seu atos, cometeu crimes incontáveis.

Para Arendt, ao contrário de muitos acusavam, Eichmann não era um psicopata, mas uma pessoa como todas as outras. Comum e medíocre. Honesto e obediente, dotado de "consciência cidadã", cumpridor de metas e funcionário exemplar, mas medíocre.


Imagem que revela


Não é difícil ilustrar a constatação da pensadora. Em maio de 2006, o programa "Fantástico", da Rede Globo de Televisão, exibiu o episódio "Ética e Indiferença",  da Série "ser ou não ser". Apresentado pela filósofa Viviane Mosé, o quadro iniciou com um fenômeno para lá intrigante: uma foto aparentemente simples, sem nenhuma complexidade, tão comum como os frequentes "selfs" tirados na frente do espelho do banheiro de casa e postados nas redes sociais.
O que a foto tem de reveladora? Praticamente nada, exceto a figura de um corpo estendido no chão e coberto por uma lona preta. Copacabana, dia ensolarado, mar azul, Pão de Açúcar ao fundo, enfim, cenário perfeito para uma foto. Perfeito, se não fosse o estranho elemento. Estranho, mas não o suficiente para impedir que a foto fosse tirada. 
O estranho elemento era o corpo de um turista que morreu afogado na praia de Copacabana. Retirado da água, foi colocado na praia para aguardar a chegada do IML (Instituto Médico Legal). O local é de grande circulação, e durante horas, pessoas passavam pelo lugar sem dar a menor conta de algo estava errado. Passavam, brincavam, sorriam, fotografavam, namoravam, conversavam, e... esbanjavam felicidade. Ninguém (ou quase ninguém) percebeu. Como firmou o fotógrafo Michel Reis, entrevistado no episódio, "é como se não estivesse ali".
A indiferença quase absoluta das pessoas quanto a permanência do corpo na praia foi constatada em outras fotos tiradas por diferentes turistas no local. Indiferença quase absoluta. Indiferença que foi quebrada com a publicação da foto no jornal "O Globo", recebida com uma grande quantidade de críticas e mensagens de indignação vindas de leitores de várias partes do país. 
Em seguida, a reportagem continua exibindo vários outros exemplos e situações em que a indiferença se faz cada vez mais comum na sociedade. O psiquiatra José Outeiral, outro entrevistado do programa, aponta com precisão que a indiferença que conduz a banalidade. Ele diz: "sempre que alguém é exposto a um estímulo repetido, semelhante, banaliza, não se percebe mais". E continua: "Então nós vivemos num mundo extremamente banalizado".
Estímulo repetido, semelhante, contínuo. Alguma semelhança entre a política de extermínio praticada pelo nazismo e a cultura do consumo vivida na sociedade atual? Toda. Principalmente quando o assunto é "publicidade ideológica". 
Lemas e frases de ordem se repetem com tanta frequência e com tanta intensidade, que se automatizam com grande facilidade na lembrança da grande maioria das pessoas comuns. Frases ditas, muitas vezes, na segunda pessoa do singular, planejada estrategicamente para que ouvintes, telespectadores e leitores se sintam individualmente motivados e convidados. Frases curtas, de fácil memorização e reprodução, condições ainda mais automatizadas com a criação de slogans, marcas e símbolos.
Quanto maior a repetição de estímulos, maior a automatização da memória. Quanto mais automáticas são as lembranças, mais imediatistas e reprodutores são comportamentos, posturas e decisões. Reproduzem não apenas o texto verbal ou imagético, mas principalmente a prática de um comportamento trazido pelos estímulos. 
O que o fenômeno presenciado na foto e revelado pela publicação da imagem tem em comum com a personalidade do general nazista analisado por Hannah Arendt é que, em ambos os casos, pessoas comuns "contaminadas" pela banalidade do mal.

Incapacidade de pensar

Na tradição filosófica, "pensar" é compreendido como o "diálogo silencioso travado consigo mesmo". Para alguns autores, a capacidade de pensar é praticamente a única característica que diferencia o homem dos demais seres vivos, já que característica biológicas não são suficientes para definir o "ser" humano e diferenciá-lo dos outros animais.
Sócrates evidenciou esse diálogo na célebre afirmação "conhece-te a ti mesmo". Com a "Alegoria da Caverna", Platão esclareceu sobre importância e necessidade diferenciar a essência da aparência, trabalho possível apenas pelo rigoroso exercício da razão. Diante da dúvida generalizada, Descartes concluiu que a única coisa realmente certa, realmente impossível e ser duvidada, é que a de que ele pensa. "Cogito, ergo sum", disse ele: "Penso, logo existo". Sartre afirma que "a existência precede a essência". Na relação entre o ser o nada, o "nada" é o origem, e o "ser" é construído na existência.
Pensar é necessário. Capacidade destinada ao aperfeiçoamento através do exercício, porém degradante se não praticada. Se é por ter a capacidade de pensar que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos, "não pensar" tira de si o que há de mais humanizante. O resultado é a desumanização.
Contempla-se aqui a "banalidade do mal". Conforme analisado por Hannah Arendt, Adolf Eichmann não é um psicopata, mas uma pessoa medíocre e desumanizado pela doutrinação cotidiana característica do nazismo. Uma pessoa banal. Observando melhor: uma pessoa comum como outra qualquer. Cidadão, patriota, marido fiel, pai exemplar, profissional de ponta.
O que caracteriza, afinal, a banalidade do mal apontada pela Hannah Arendt? O prevalecimento da habilidade de afastar do indivíduo a necessidade de pensar. Quanto menor a necessidade, maior a banalidade. Praticidade cotidiana afasta a necessidade de pensar. Não havendo mais necessidade, não há mais habilidade. Frases de ordens, marcas e slogans publicitários automatizam, massificam, "robotizam", emburrecem. Graças a incapacidade de pensar, pessoas comuns cometem atrocidades abomináveis, talvez até, nunca antes imaginadas.
Ao se banalizar, Adolf Eichmann abriu mão de ser pessoa. Tornou-se incapaz de fazer juízos morais. Tornou-se incapaz de distinguir o bem do mal, o justo do injusto, o belo do feio, o certo do errado. Embora condenado a morte e executado, o general nazista Adolf Eichann pode não ter morrido. Continua vivo, não em seu próprio corpo, mas simbolicamente adormecido em tantas consciências banalizadas e medíocres do cotidiano, que pode, a qualquer momento, perseguir, torturar, e assassinar.

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