Polêmicas e contradições do Ensino Religioso nas Escolas

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aprovar o Ensino Religioso de natureza confessional nas escolas públicas acrescentou mais um capítulo na histórica polêmica deste assunto. Ao que parece, estamos longe de chegar a uma conclusão coletiva. 
Nas redes sociais digitais, o assunto ganhou força. Em poucos dias, incontáveis homens e mulheres de diversas regiões, religiões e idades, se manifestaram sobre o assunto. Ainda bem, pois o livre pensamento é um direito assegurado a todo e qualquer cidadão e cidadã pela Constituição Federal. Mas, apesar do pleno exercício desta liberdade, parece que consenso não é alcançado principalmente pela falta de conhecimentos aprofundados sobre o assunto.
É fato que o país tem sérias dificuldades para lidar comeste tema, e não é de agora. A dificuldade é até compreensível, pois a história do Brasil não é muito favorável. Para começar, há muito mais tempo de colônia do que de independência. Se consideramos que a descoberta do Brasil ocorreu em 1500 e o Grito da Independência foi dado por Dom Pedro em 7 de setembro de 1822, são 322 anos de Colônia. De 1822 a 2017, ano da redação desta artigo, são 195 anos. Historicamente, há muito mais referências coloniais do que nacionais.
O Brasil foi colonizado pelos europeus. Muito diferente da ebulição que passou a Europa dos séculos XVI, XVII, XVIII, e XIX, não contou com importantes movimentos de filosóficos, políticos e sociais de emancipação popular, autonomia política, e democracia de direito. Enquanto países como Itália, Inglaterra, e França conheceram importantes pensadores como Galileu, Newton, Maquiavel,  Descartes,  Locke, Bacon, Hume, Montesquieu, Diderot, Kant e tantos outros, praticamente todas as influências filosóficas, morais, políticas e sociais que formaram a cultura brasileira vieram das mãos dos jesuítas.
Na Alemanha, e posteriormente nos demais países ao redor, a invenção da Prensa pelo alemão Johannes Gutenberg em 1450 revolucionou a forma de pensar. A passagem da produção de livros produzidos manualmente para a publicação em larga escala graças ao invento tornou mais rapidamente acessível a toda a população local as novas ideias oriundas não só das descobertas Renascimento, mas também dos conhecimentos ousados de Galileu Galilei, Giordano Bruno e Johannes Kepler. Clássicos das literaturas grega e romana puderam ser lidos e conhecidos por grande parte da população, e a maior rapidez na produção e reprodução de livros através da tipografia permitiu também uma novidade decisiva: o uso da língua vernácula (língua natural de cada país) nas produções acadêmicas. O latim permaneceu por muito tempo como língua oficial da academia, mas o emprego da língua vernácula favoreceu e muito para o surgimento de uma população crítica e letrada.
Apesar dos avanços do período, a existência de bibliotecas em países europeus é muito mais antiga que o Renascimento. Durante a idade média, imensas bibliotecas eram abrigadas pelos muros dos mosteiros. A atuação dos monges copistas foi a principal responsável por manter viva para a posteridade os conhecimentos produzidos pelas ciências antigas, que puderam ser continuados e aperfeiçoados após serem redescobertos pelo Renascimento.
A invenção de Gutemberg fez com que as bibliotecas se destrancassem dos mosteiros medievais para que alcançassem vastas livrarias empalhadas pelas ruas locais. Com isso, a altíssima taxa de analfabetismo durante os anos que atravessaram a Idade Média foi drasticamente diminuída.
O Brasil, por outro lado, só conheceu sua primeira biblioteca com a chegada da família real em 1808. A única produção literária que havia por aqui, se é que havia, era puramente catequética. Enquanto a fundação das primeiras Universidades nos principais países europeus ocorreu durante a escolástica (séculos IX ao XVI), a primeira universidade brasileira foi fundada apenas na década de 1930.
Partindo de todas essas informações históricas, não é difícil perceber porque os brasileiros encontram tamanha dificuldade em debater a existência ou não do Ensino Religioso nas escolas de educação básica. Há, pelo menos, duas linhas de reflexão que ajudam a compreender mais profundamente esta dificuldade: a longa tradição catequética implantada pelos jesuítas, e a não preparação dos habitantes deste país para lidar com o livre pensamento. O "Estado laico", por exemplo, é um princípio até hoje não bem compreendido por esta cultura. Muitos entendem o Estado Laico como aversão à religião,distorcendo por completo a natureza original deste princípio.
Por todos esses motivos, o Ensino Religioso ainda não é amplamente conhecido como um componente curricular de natureza científica, voltado ao estudo das culturas e da dimensão religiosa presentes na condição humana. Vale lembrar que Religião é muito mais que uma instituição; corresponde as primeiras formas de organização social, política e econômica presentes nos tempos mais remotos, que deram origem mais tarde aos conceitos de civilização e cultura.
Cristianismo, Islamismo e Judaísmo são três das maiores religiões atualmente conhecidas, mas, frente ao contexto histórico conhecido desde o Período Neolítico (cerca de 20.000 a.C), estão entre as religiões de menor tempo de existência. É insanidade mental e analfabetismo histórico achar que o ensino religioso deve se concentrar ao ensino destas religiões ou de apenas uma delas. Juntas, Cristianismo, Judaísmo e Islamismo representam apenas a ponta do iceberg. Mas...
Defendo o princípio de que o Ensino Religioso só poderá ser visto como um componente curricular sério se for devidamente abordado pelo viés científico. E se você for daqueles que acredita que Religião e Ciência não combinam, então faço um convite: experimente estudar e conhecer de perto as Ciências da Religião. Sim, ciências. É plural mesmo. Apenas para começar, cito algumas aqui: história, antropologia, política, sociologia, filosofia, arqueologia, e por aí vai. E a teologia? Sim, a teologia faz parte deste grupo, mas não é a mais importante. Ela é tão importante como todas as outras, mas não o suficiente para ser considerada a mais importante. Até porque, uma teologia séria, autenticamente comprometida com seu objeto de ensina, também busca dialogar com todos esses conhecimentos. Todas são analisadas e estudadas a partir do rigor científico.
Crenças, convicções, dogmas e doutrinas são bem vindos em seus espaços apropriados como catequeses e escolas dominicais. No ensino religioso, há que se pensar sobre. São bem vindas sim, mas quando necessárias para as devidas compreensões, e desde que de maneira respeitosa a todos os presentes. Uma coisa é esclarecer a existência de uma doutrina para fins de esclarecimento sobre a origem de uma cultura; outra coisa é afirmá-la e defendê-la como uma verdade a ser seguida. Essa presença, portanto, pode ser mais eventual do que rotineira.
Para terminar, faço outro convite a você, caro leitor, cara leitora: a ler e estudar os incisos do artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil. Se não a tiver em mãos, é só clicar aqui para acessá-la diretamente do site do Governo Federal. Cito o artigo 5° pensando apenas em uma leitura mais rápida, mas nada impede que você a leia por inteiro. Na sequência, convido você a avaliar se as informações que citei aqui contrariam os princípios desta Magna Carta.  Assim poderemos fazer ampliar horizontes e agir com um debate mais sério e produtivo.

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