Quando a arte enfrenta o sofrimento
O alemão Arthur Shopenhaeur (1788-1860) é conhecido como um filósofo pessimista, pertencente também ao grupo conhecido como "Filósofos da Suspeita". Embora taxado de maneira negativa, a forma como aborda a existência humana é bastante profunda e reveladora. A meu ver, a filosofia de Schopenhauer revela traços característicos da natureza humana ainda pouco compreendidos.
Vale o destaque para a obra "O Mundo Como Vontade e Representação", publicada em 1819 e composta por quatro volumes, onde ele aborda o mundo dos fenômenos como produto de uma insaciável, viciosa, e cega vontade metafísica.
O objetivo deste texto não é produzir um tratado filosófico, de leitura compreensível apenas aos iniciados no assunto. Por este motivo, desenvolverei, em poucas palavras a filosofia que mais atrai a minha reflexão no campo proposto.
Referências históricas
Para mergulhar no assunto, cabe antes um esclarecimento contextual da obra Schopenhaueriana. Para isso, voltemos ao século XVIII, no pensamento do filósofo Immanuel Kant (1724-1804) para melhor compreender uma das principais referências utilizadas pelo autor estudado neste artigo.
Na obra "Crítica da Razão Pura" (1781), Kant desenvolveu uma síntese entre os principais movimentos filosóficos do século XVII: o Racionalismo e o Empirismo. Síntese que revolucionou a Teoria do Conhecimento na época e que se manifesta na distinção entre "coisa em si" e "fenômeno". Concentremos agora a atenção exatamente neste ponto.
"Ser em si" é o nome dado por Kant para representar o ser real, o que de fato é. É o que é, independente de ser ou não conhecido, ou mesmo de como é conhecido. Conceito que abrange não só a física, mas também a Metafísica. O fato de ser ainda desconhecido não é suficiente para afirmar sua inexistência. Já o "Fenômeno" por outro lado, é tudo o que é acessível ao entendimento humano. Tudo o que pode ser conhecido, desbravado, comparado e aprofundado pelo conhecimento, representa o mundo dos fenômenos. Restringe-se apenas ao mundo da Física.
Há, segundo Kant, um distanciamento entre o "ser em si" e "fenômeno". Conforme apontado no parágrafo acima, a capacidade de conhecimento é puramente fenomênica, limitando-se apenas ao munda da demonstração. Nada que não passe pela matéria pode ser fisicamente conhecido, já que não passa pelos sentidos (tato, olfato, visão, paladar, audição); logo, o que não pode ser constatado de alguma forma pelo caminho da sensação, não pode ser acessado pelo entendimento.
Curioso notar que o Ser Metafísico (Ser em Si) é inacessível ao entendimento, o que não quer dizer que não exista. Não pode ser negado, pois, para ser negado, teria de ser primeiro conhecido. Mas não é este o caso. "Deus", "Alma" e "Mundo" são exemplos de dados inacessíveis ao entendimento por serem metafísicos. Qualquer tentativa de decifrá-los é mera especulação, já que a razão humana não está a altura deste exercício.
O Mundo como Vontade e Representação
Frente a demonstração da abordagem epistemológica Kantiana, Shopenhauer parte do princípio de que o mundo por nós conhecido nada mais é que uma representação da nossa vontade. Não conhecemos o mundo como realmente é, pois, como demonstrado pelo antecessor, "o mundo como realmente é" pertence ao "ser em si", impossível de ser conhecido devido as limitações da razão humana. Vemos o mundo a partir do que a nossa vontade deseja ver.
Diferenciando-se da tradição filosófica anterior, Schopenhauer aponta a vontade como o verdadeiro motor da natureza humana. Negando que o ser humano fosse movido pela racionalidade ou pelo pensamento, Shopenhauer descreve a vontade como a verdadeira essência que define a espécie humana. Mas não se trata de uma vontade qualquer, e sim de uma vontade irracional, ímpeto cego e insaciável que mantém o humano escravo dos seus desejos.
Para melhor compreender o que fora dito pelo filósofo, façamos uma demonstração simples. A natureza humana é frágil e limitada, e a primeira evidência disso está em sua mortalidade. Para morrer, é suficiente estar vivo, e nada mais que isso. Há ainda outras evidências que atestam esse entendimento: doenças, fome, misérias, etc.
Embora frágil e limitado por sua natureza, o ser humano é movido por uma vontade infinita, ímpeto cego e descontrolado da qual é incapaz de se livrar. Vontade continuamente frustrada em função da pequenez presente na natureza.
"A vida é dor e sofrimento", afirmou Shopenhauer. O sentido da vida é sofrer. Vivemos, segundo ele, em função de amargar as inúmeras frustrações que temos em vida, e todas as crenças, utopias, e projeções são apenas esforços de suportar a dor.
Por tratar de algo inerente à natureza, o sofrimento não pode ser evitado, e qualquer esforço por evitá-lo resulta em uma tentativa de fugir ou negar a própria natureza, negação da própria essência que torna o sofrimento ainda mais insuportável e desumano.
Como transcender a dor?
A sensação de prazer ou felicidade só é de fato experimentada depois de passar pela dor ou pelo sofrimento. É incapaz de sentir prazer quem não sentiu dor antes, assim como é incapaz de experimentar a sensação de felicidade quem ainda não despertou a percepção do próprio sofrimento. Por melhor que seja sua construção, um calçado nunca será confortável para quem nunca teve seus pés machucados anteriormente por um calçado apertado ou mal construído.
A bota notícia é que, como já dito acima, dor e sofrimento podem ser enfrentados. Não se trata de masoquismo, mas de um enfrentamento direto que visa à transcendência. Três são os caminhos apresentados pelo filósofo como alternativas para enfrentar essa trágica característica da natureza humana, caminhos que ele apresenta segundo um ordenamento hierárquico.
O primeiro caminho encontra paralelo no Budismo, e está na educação da própria vontade para despertar a capacidade de não querer. A liberdade, neste caso, não está no ato de conseguir tudo o que quer, mas em ser capaz de não querer algumas coisas. Renunciar a própria vontade, mas não a toda vontade, e sim as vontades que não são indispensáveis a vida. É impossível conseguir tudo o que quer, pois o querer não tem limites, mas é possível deixar de querer algumas coisas.
O segundo caminho assenta-se na ética; é o caminho da compaixão. Ao olhar para o sofrimento do outro, há um certo desligamento do próprio sofrimento. Não quer dizer que ele deixa de existir, mas que tende a ser encarado com maior humanidade. A percepção somente do próprio sofrimento estimula o que há de mais predador e destrutivo na própria vontade: o egoísmo. Colocar-se no lugar do outro, além de humanizar a dor, pode fortalecer ainda mais o caminho já apontado no parágrafo anterior: a pobreza voluntária.
Há, ainda, um terceiro caminho. Segundo Schopenhauer, além de ser o coroamento dos caminhos anteriores, é o que apresenta a maior quantidade de forças para transcender a dor: o caminho da experiência estética. Não implica em consumir arte, mas em criá-la. O consumo da arte pode servir de estímulo e repertório para sua criação, mas o consumo da arte limitado somente ao consumo e nada mais que isso pode não ser uma experiência muito significativa uma vez que, reduzido a mero entretenimento, será apenas mais uma das tentativas vazias e fracassadas de fugir da dor.
Ao criar artisticamente, o indivíduo é capaz de desligar-se da face mais cruel do seu sofrimento, materializando-a em sua expressão criativa. Desligamento que não se manifesta em mero esquecimento alienante, mas em expressão autêntica do ser em pleno contato com as finitudes de sua própria natureza. Resumindo: mesmo a mais profunda miséria é capaz de encantar por sua beleza.
Experiência artística como transcendência ao Sofrimento
O texto ficou maior que o previsto. Por isso, amigo leitor, amiga leitora, não tomarei mais o seu tempo. Para finalizar o artigo, lanço um desafio: você consegue se lembrar de algum nome que encontrou na criação artística uma alternativa produtiva para lidar com o próprio sofrimento? Pode ser alguém próximo de você, ou mesmo alguém conhecido também pela história. Se puder lembrar de mais pessoas e até mesmo tempos diferentes, melhor ainda. Quanto mais nomes, melhor será o repertório deste desafio.
Mas esse desafio ainda está muito fácil. Que tal deixar ele um pouco mais emocionante. Consegue lembrar de alguma obra, movimento ou expressão artística que ilustre esse enfrentamento? Que tal? Lembrou? Fiquei curioso agora. O que você lembrou remete ao sofrimento somente da pessoa do artista, ou ao sofrimento caraterístico de uma época?
Poxa, eu quero saber. Que tal você adicionar um comentário a esta publicação falando do seu desafio. Quem você lembrou? Do que lembrou? A que associou essa leitura? Será muito legal se você compartilhar.
Comentários
Ao meu ver, respondendo ao primeiro desafio, referenciado-se a esfera pessoal, a teoria de Schopenhauer é facilmente relacionável com as obras "Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos", de Van Gogh; "O grito", de Edvard Munch; músicas como "Mother", do John Lennon ou livros como "As Primaveras" de Casimiro de Abreu (poemas como "No Lar", "Visão" etc) e "Noite na taverna" e "Macário", de Álvares de Azevedo, em geral, oriundos da segunda geração do romantismo brasileiro. Na verdade, são tantos que torna-se impossível citar todos hahahaha
Já se tratando do segundo desafio, é possível fazer relação com ainda mais obras, a começar por todos os livros que retratam o sofrimento nordestino, como "Os sertões", de Euclides da Cunha, retratando a Guerra dos Canudos; "A Bagaceira", de José Américo de Almeida; "O quinze", de Raquel de Queiroz, ambos dissertando sobre a seca nordestina, óbice estrutural da sociedade brasileira. Além disso, é possível encontrar diversas músicas expressando momentos turbulentos da história pátria, como as compostas nos nebulosos dias de ditadura militar ("Apesar de você", "Roda viva", "Cálice", "Como nossos pais", "O bêbado e a equilibrista", "Para não dizer que não falei de flores", etc).
Acho válido mencionar também a música "Geni e o Zapelim", de Chico Buarque e obras como os livros da Angela Davis ("Mulher, raça e classe", "Estarão as prisões obsoletas?", etc) e do Frantz Fanon ("Os condenados da terra" "Peles negra, máscaras brancas", etc), haja vista que exprimem vícios conjunturais, tais quais racismo, machismo, LGBTfobia e classismo, não só de uma única época do mundo, mas contextos estruturais identificados (e vividos) até hoje por muita gente.
Saudades das suas aulas, professor, e de todos nossos debates!!
Ao meu ver, respondendo ao primeiro desafio, referenciando-se a esfera pessoal, a teoria de Schopenhauer é facilmente relacionável com as obras "Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos", de Van Gogh; "O grito", de Edvard Munch; músicas como "Mother", do John Lennon ou livros como "As Primaveras" de Casimiro de Abreu (poemas como "No Lar", "Visão" etc) e "Noite na taverna" e "Macário", de Álvares de Azevedo, oriundos da segunda geração do romantismo brasileiro. Na verdade, são tantos que torna-se impossível citar todos hahahaha
Já se tratando do segundo desafio, é possível fazer relação com ainda mais obras, a começar por todos os livros que retratam o sofrimento nordestino, como "Os sertões", de Euclides da Cunha, retratando a Guerra dos Canudos; "A Bagaceira", de José Américo de Almeida; "O quinze", de Raquel de Queiroz, ambos dissertando sobre a seca nordestina, óbice estrutural da sociedade brasileira. Além disso, é possível encontrar diversas músicas expressando momentos turbulentos da história pátria, como as compostas nos nebulosos dias de ditadura militar ("Apesar de você", "Roda viva", "Cálice", "Como nossos pais", "O bêbado e a equilibrista", "Para não dizer que não falei de flores", etc).
Acho válido mencionar também a música "Geni e o Zapelim", de Chico Buarque e obras como os livros da Angela Davis ("Mulher, raça e classe", "Estarão as prisões obsoletas?", etc) e do Frantz Fanon ("Os condenados da terra" "Peles negra, máscaras brancas", etc), haja vista que exprimem vícios conjunturais, tais quais racismo, machismo, LGBTfobia e classismo, não só de uma única época do mundo, mas contextos estruturais identificados (e vividos) até hoje por muita gente.