O que as Distopias têm a nos ensinar?

Sou um leitor apaixonado por distopias. Alguns dos nomes preferidos do meu do meu acervo de leituras são: "1984" (1949) e Revolução dos Bichos (1945), do pseudônimo inglês George Orwell, Admirável Mundo Novo (1932), de escritor inglês Aldous Huxley, e, mais recentemente, Fahrenheit 451 (1953), do Norte-Americano Ray Bradbury. Leituras que fascinam, mas que também entristecem.

Entristecer-se; eis um suposto crime ou pecado condenável pelos fictícios mundos destas obras. Histórias que foram escritas ainda na primeira metade do Século XX, mas que parecem retratar com maestria a sociedade do século XXI. Para os escritores da época, não passavam de projeções futurísticas das sociedades a partir do presente por eles vividos. Toda previsão nada mais é que uma antecipação do futuro. Antecipação que pode conter erros e acertos. Admira-me a precisão com que estas previsões acertaram em cheio.


George Orwell
Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, autor dos conhecidos livros "1984" e "A Revolução dos Bichos". Foto extraída do seu crachá de jornalista em 1933. Fonte/divulgação: Wikipédia

Distopias são Ficções. Mais que isso: ficções especulativas que viajam na imaginação. Ficções que dizem muito sobre o presente dos seus autores. Ninguém é capaz de imaginar uma sociedade futura, por mais caótica ou esperançosa que seja, se não partir do presente em que vive. Parte-se do presente para projetar o futuro. Por isso são tão preciosas.


Aldous Huxley, autor do livro "Admirável Mundo Novo, uma das distopias mais conhecidas do Século XX. Fonte/divulgação: Wikipédia.

Mas as Distopias vão além: além de dizer sobre o tempo presente de seus autores, podem ser reveladoras também para o momento presente de seus leitores. Não importa quantos anos se passaram após suas publicações: há sempre uma atualidade permanente em suas leituras que não as deixam cair no esquecimento. Passa-se o tempo, mudam-se as gerações, surgem novas técnicas e mentalidades, mas as Distopias continuam ali, instigando, provocando, e incomodando.

Nas palavras Neil Gaiman, autor da introdução de Fahrenheit 451, "[...] A ficção especulativa é muito boa em abordar o presente, não o futuro [...]", presente de quem escreve, mas também o presente de quem lê (São Paulo: Globo, 2020 p.10). 


Totalitarismo e distopia


Não há como ler "A Revolução dos bichos" (1945) e ficar indiferente aos riscos e contrastes de um contexto pós-revolucionário. A obra orwelliana não é uma escola preparatória para a construção de governos despóticos e autoritários, mas uma grande lição que torna qualquer leitor capaz de entender como eles se constroem. Obra que diz muito sobre a formação do Totalitarismo do século XX, mas que também desafia a refletir sobre os dias atuais.

Em alguns momentos, a leitura de "1984" (1949), mais parece tortura psicológica que uma apreciação literária. O tempo todo, leitores são instigados a decifrarem a figura do Grande Irmão, ao mesmo tempo que são levados a temê-lo. Nada parece escapar da vigilância autoritária de "1984", e nem mesmo os mais íntimos e obscuros segredos individuais resistem a sempre alerta "Polícia do Pensamento". 


Cena do filme "1984"
"Dois minutos de Ódio". Apenas uma dentre as tantas e impactantes cenas do filme "1984" (1956), sob a direção de Michael Radford. Na cena, os habitantes de Londres são constantemente estimulados exercitarem um ódio mortal ao suposto traidor Emmanuel Goldstein. Após a reafirmação do ódio, a saudação "religiosa" ao Grande irmão é entendida como sinal de amor e fidelidade ao partido.


Ficção ou realidade?


Não é difícil identificar a atualidade de "1984". Na ficção, figuras como o Grande Irmão e Emmanuel Goldstein parecem realmente existir; a principal diferença parece estar na sutileza e discrição destes personagens na sociedade atual. 

A facilidade com que algumas pessoas empregam palavras como "comunista" ou "esquerdista" pura e simplesmente para insultar ou agredir ilustra com muita precisão os "dois minutos de ódio", do romance 1984. Na grande maioria destes casos, tais pessoas sequer sabem o real significado das palavras que estão falando, nem fazem questão disso; importa apenas insultar, ofender, agredir, e "cancelar".

Interessante notar como, na política atual, personagens populistas se apresentam como figuras messiânicas, heróis sobrenaturais. Figuras que, assim como a fênix, parecem ressurgir das cinzas para libertar o povo do fogo e da escuridão. Com muita facilidade, arrebanham incontáveis seguidores que podem até mesmo tirar a própria vida para defenderem ideais e opiniões de seus líderes despóticos

 A polícia das ideias de "1984" parece ser tão real quanto a supremacia do "Grande Irmão" e o ódio a "Emmanuel Goldstein". Experimente publicar uma ideia ou uma crítica em qualquer uma das redes sociais da web, ou mesmo comentar uma notícia postagem disponível em qualquer web-site da World Wide Web (Rede Mundial de Computadores) para experimentar os poderes punitivos da polícia do pensamento. 

Pensando bem, publicar ou comentar pode ser arriscado; ler os comentários de uma notícia compartilhada em redes sociais como Facebook ou Instagram já é suficiente para condenar a si próprio por ter cometido um crime do pensamento, ou, nas palavras de 1984, uma crimideia.

Nas palavras de Aldouls Huxley:

"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."


Felicidade como obrigação


E por falar em ditadura perfeita, "Admirável Mundo Novo" e "Fahrenheit 451" apontam para uma das principais tiranias do século XXI: a obrigação de ser feliz. Mais que obrigação, felicidade é o principal distintivo que separa os indivíduos sociáveis e civilizados dos incultos e indesejáveis. A principal novidade está no fato de que, caso alguém não se sinta feliz, a punição não vem do Governo, e sim do própria pessoa ou dos semelhantes à sua volta.

A obrigação de ser feliz é muito bem ilustrada no consumo do "Soma", uma droga que é ingerida por todos os personagens de "Admirável Mundo Novo" todas as vezes são acometidos por qualquer sensação de vazio, tédio, ou angústia. Não importa o quão leve ou embaraçosa seja a situação; basta uma dose de Soma para que os indivíduos estejam felizes novamente. Sem esforço algum, todas as sensações de vazio, tédio e angústia, são imediatamente removidas na mesma velocidade de um estalar de dedos.

Esses mesmos problemas parecem ser evitados de forma relativamente simples em "Fahrenheit 451": queimando-se livros, dedicando-se totalmente aos programas de entretenimento e dirigindo carros em altíssimas velocidades para evitar qualquer situação de confusão, abstração, e trabalho intelectual danoso.

Ser feliz é uma obrigação, e tudo o que desperta angústia e insatisfação deve ser evitado, ou melhor, queimado. Nas palavras Beatty, um dos personagens de "Fahrenheit 451":

- Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queime-o. Os brancos não se sentem bem em relação à Cabana do pai Tomás. Queime-o. Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos o livro. Serenidade, Montag. Paz, Montag. Leve sua briga lá para fora. Melhor ainda, para o incinerador. Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os também. Cinco minutos depois que uma pessoa morreu, ela está a caminho do Grande Crematório, os incineradores ascendidos por helicópteros em todo país. Dez minutos depois de uma morte, o homem é um grão de poeira negra. Não vamos ficar arengando os in memoriam para os indivíduos. Esqueça-os. Queime tudo, queime tudo. O fogo é luminoso e o fogo é limpo. (São Paulo: Globo, 2020, p.83)


Literatura X História


Bücherverbrennung é uma expressão alemã, cuja tradução é "queima de livros". Faz referência ao episódio presenciado em  21 de junho de 1933, nas ruas de Munique, na Alemanha. Poucos meses após a ascensão de Hitler ao poder, policiais, bombeiros, e uma porção de outras autoridades presenciam um grande espetáculo a céu aberto: uma grande queima de livros que, segundo o poeta nazista Hanns Johst, atenderia a necessidade de purificação radical da literatura alemã.

Os livros queimados pertencem a uma quantidade expressiva de autores, cujas leituras foram proibidas na Alemanha nazista. Dentre eles estão Walter Benjamin, Bertold Brecht, Sigmund Freud, Albert Eistein, Karl Marx, e Thomas Mann, Nobel de Literatura no ano de 1929.

Queimar os livros foi apenas a primeira demonstração do que estaria por vir. Nas palavras do poeta alemão Heinrich Heine, "onde se queimam livros, acaba-se queimando também pessoas", e foi exatamente esse o desdobramento posteriore ao Bücherverbrennung: as fornalhas de Auschwitz, Dachau, e tantos outros conhecidos campos de concentração nazistas.

Discursos de "defesa da moral e dos bons costumes", "purificação cultural", e "segurança nacional", costumam ser terrenos férteis para esse tipo e comportamento. Não tivemos, no Brasil, um episódio como Bücherverbrennung alemão, mas já tivemos temidas listas de livros proibidos no período do Regime Civil-Militar (1964-1985). Não tivemos Campos de Concentração, mas não faltou tortura, exílio, e morte.

Já parei para pensar sobre quem seriam os autores de obras transformadas em cinza caso tal episódio ocorresse no Brasil de hoje. Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Gilberto Freire, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Leandro Karnal, Márcia Tiburi, Marilena Chauí, Viviane Mosé, Luiz Felipe Pondé, Djamila Ribeiro, e Renato Janine Ribeiro seriam apenas alguns dos primeiros nomes da Lista. Primeiro os livros; em seguida, tudo e qualquer coisa que retratasse sua memória. Autores, Professores, Educadores... Tudo transformado em pó e cinza.




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